Quando eu descobri que ia perder os braços, fiquei um pouco triste. Eu gostava dos meus braços. E devo assumir que sou bastante possessivo com as partes do meu corpo. Se fosse um dedo, seria menos ruim. Algo tipo um mindinho. Do pé. Mas não. Pois bem... Respirei fundo e aceitei. Sabe como é né. Quando o doutor fala que é serio, é porque é serio. Era uma espécie de alergia, com vírus, com bactéria com necrose e com alguma falta de vitamina. O braço parecia normal, mas doía em dia de chuva. Como sempre aprendi a ser positivo em situações complicadas, fiquei feliz por não ter nunca mais que cortar as unhas do dedo, nem lavar as mãos antes de comer, nem ter que me preocupar em arranjar uma boa posição para os braços na hora de dormir. Tudo tem seu lado bom.
Minha mulher que não conseguiu ver as coisas como eu. Ela ficou bem chateada. Além do mais porque estava grávida. Eu falava que tudo ia terminar bem, que daríamos um jeito, mas ela ficou bem, bem, bem chateada. Chorou e tudo. Foi quando eu dei um abraço nela que percebi a merda que ia ser estar sem braço. E ainda abraçado com ela olhei a palma da minha mão apertando sua costas. Pensei: Putz, que vida ingrata.
Fizemos uma mistura de chá da camomila com suco de maracujá para baixar os ânimos. Conversamos sobre como seriam as coisas e ela falou que teríamos que nos casar enquanto eu tivesse dedo. E que teríamos que fazer tudo que se faz com braço antes da amputação. Eu comecei a ficar nervoso. Nunca fui de fazer muita coisa. Agora vem ela nessa loucura toda... Falou trocar algumas lâmpadas, consertar algumas coisinhas, montar algumas outras, tirar foto abraçado com um bando de gente e ainda teve coragem de perguntar se eu tinha interesse em fazer uma experiência com alpinismo. Eu só pensava no estresse que seria beber cerveja de canudinho...
Resolvemos ir para a praia para andar de mãos dadas e pegar sol parecendo que éramos um casal normal. Tudo tinha ar de despedida. O coco, as posições na areia, passar o protetor, o mergulho, o jacaré, o troco, tirar e por os óculos escuros... Era bem chato o ar melancólico que pairava.
À noite fui beber com uns amigos para relaxar um pouco e contar as novas notícias. O pessoal ficou com a mesma cara de borocoxô e eu fiquei de saco cheio. Mostrei-lhes o dedo do meio e só faltou eles chorarem. Foi quando eu falei que estava com medo. O pessoal ficou atento como se estivessem para ouvir uma revelação. Então completei; com língua, mas sem dedo, mulher mete medo. Consegui tirar umas risadas fracas.
Estava voltando a pé para casa levemente embriagado pensando em tudo que meus dedos deixariam de sentir. Fiquei envergonhado de me imaginar como um ser rastejante copulando. O que seria do sexo sem dedos sacanas? Sem o braço, sem pegada... Foi nessa hora em que a tristeza me tomou o corpo. Sentei no ponto de ônibus para deixar o tempo passar. Devia ser umas duas da manhã. Não queria mais andar. Levantei para chamar um ônibus, taxi, sei lá. E nada. Ninguém passava. Maldisse os deuses, soquei um poste, xinguei o doutor e vi um carro se aproximando. Fiz o sinal de carona (Sempre quis pegar carona com o polegar). Ele parou. Vi que o mundo não estava tão ruim assim. Ele perguntou para onde eu estava indo, eu falei que era logo ali, depois de tal bairro. Entrei no carro e não me lembro de mais nada.
Só depois que morri que me explicaram que fui sequestrado e me desmembraram todo para o mercado negro. Fiquei um pouco chateado, confesso. Não era de se esperar algo assim tão repentinamente; Mas realmente, conversando com o pessoal, achamos graça da situação. Fiquei triste pela minha mulher e filho por nascer e amigos e tal. Mas pelo menos, eu, mesmo morto, tinha braços. E olhando para os vivos que ainda tinham uma vida inteira pela frente tive a certeza; que vida ingrata.