quinta-feira, 13 de maio de 2010

Era domingo

Quando virei para o lado, a certeza que ela ainda estaria acordada era grande. Um sorriso meu bastou para um sorriso dela. Minha mão alcançou seus descabelos, tentei colocá-los fora de seu olho semi coberto, em vão. Os cabelos têm vontades além dos dedos. Fitei suas feições. As dobras, as marcas, os contornos, os relevos, os desenhos. A penumbra criava um novo rosto que agora eu reconhecia. O calor mantinha uma leve camada de suor em nós. Brisas leves sopravam delicias, minha boca insistente não se saciava; Queria lábios, achava pescoço, esbarrava em covinhas, descobria ossinhos, envolvia pintinhas. Fogosos e vagarosos abraços seguidos por risinhos agudos e aquela sensação incrível de ter chegado além.

Assim que percebi o primeiro risco de roxo no céu que era antes apenas breu, fui tomado uma melancolia tosca de quem acaba de ter noção do tempo. O amanhã chegara. Era segunda. Quase chorei. Ela não imaginava a fatalidade. Era bonito vê-la ainda de domingo. Seu corpo ainda era descanso, sua alma ainda era calma, seu sorriso era só um breve e descomplicado sorriso.

Chamei-a para mais perto de mim. Pedi um abraço. Seu cheiro era insaciável. Adorava quando ela não usava perfume, bases, sombras, batons. Beijei seu ouvido coberto de cabelo. Inspirei. “Adoro você assim”. Ela não respondeu, mas suas pernas entrelaçando as minhas dava a entender o que não precisava ser dito. O céu alaranjava. Mordi seu colo como quem queria guardar um pouco dela para suportar a vida cruel dos afazeres. Ela abraçava e apertava minha face contra seu peito. Eu mergulhei ouvindo seu coração. Meu deus! Como é bom esse carinho! Uma lágrima distraída escorreu despercebida, a alvorada cantava bom dia.

Ela, naturalmente, assim que percebeu o sol, fez-se livre de mim. “Estou atrasada!”. A partir de então fui violentado em cada ação do inevitável. O cabelo, agora preso, os movimentos rápidos pelo armário, o barulho do chinelo, o calor e a luz exagerada do sol, a água do banho, o cheiro do xampu, do desodorante, do perfume, do batom, do blush, do café, todas as roupas, o pão mal comido, o beijo rápido de despedida, a solidão.

Agora faltam dias intermináveis até chegar sexta-feira. Não quero imaginar as horas, as refeições, as ligações, as cobranças. Tanta coisa! Como se a saudade não bastasse... Fatídico cotidiano. Triste existência. Cruel realidade.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Nossa, que lindo Thii! Amei esse hahaha

    É realmente muito ruim "acordar" para essa realidade inevitável de afazeres do cotidiano =/

    Saudades dos domingos de Beatles...

    Beijos! <3

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  3. Sério, quase gozei...

    Meu amigo, seu texto e foi excepcional. Digo "foi" porque sei que o próximo será ainda melhor. Quando eu crescer quero ser igual tu!

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  4. "...palavras como uma conversa que esquentam até os ossos sem dizer precisamente nada."
    Faço das palavras de Caio Fernando Abreu as minhas.

    Uma imagem tom de sépia toda bonita.

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