quarta-feira, 2 de junho de 2010

Pastores da Lapa - Ou porquê não acreditamos em mãe de televisão

Fiz um apartheid em meu coração para segregar minha mente de flores .
Eram tempos áureos, as minhas décadas de menino na lapa, fui separado de amor de mãe desde que me lembro, e a melhor parte é que me lembro bem. As pessoas que costumam vir de família têm a mania de esquecer seu passado e perder sua tradição. Já diziam os boêmios da lapa "pai nobre, filho rico neto pobre", mas nós que moramos na rua temos sempre que lembrar de onde viemos. Nossas origens, mesmo que não sejam nossas, mesmo que sejam nebulosas. Nós que moramos nas ruas temos tradição. Uma tradição que surgiu da decadência das suas tradições enquanto a sua atingia o chão a nossa descia o morro e quando as suas lembranças eram esquecidas, nós fazíamos questão de transformar em coisa nossa. E nessa nossa caminhada, onde o governo quebrava nossos joelhos com cassetetes azuis e tínhamos um abrigo, tínhamos um seio maternal e amigo. Tínhamos a quem lamentar e servir. Tínhamos a Lapa. A Lapa era nossa verdadeira mãe. Desde que me tenho como gente andava com meus amigos pelas ruas da cidade. Éramos quatro em busca de comida e dinheiro. Não éramos considerados quadrilhas bondes ou essas coisas que vocês vêem por aí hoje, éramos bicho. Às vezes ficávamos nas ruas da Cinelândia até tarde para assaltar os casais que se enamoravam. Convivíamos ao lado de putas e travestis, de músicos e deputados. Estávamos no centro dos acontecimentos sempre na hora certa com a desculpa certa para o policial errado. E foi assim que o bairro nos acolheu. Você já deve ter visto nas portas dos bancos na Presidente Vargas mendigos dormindo a noite. Na minha época a cidade tinha poucos filhos. Como mãe, era um pouco cativa. Numa caminhada pelas ruas de hoje você pode ver muitas pessoas nas ruas. E certo que há muitas pessoas nelas, mas falo de pessoas especiais que ouvem os sons da cidade enquanto ela repousa. Você nunca pensou para onde vão as pessoas que desaparecem? A cidade acolhe aqueles que cantam e sambam para não sentirem fome. A cidade abraça aqueles objetivados pela solidão, nós, cansados de viver sozinhos e apadrinhados pelo vazio dos corações sem carinho. Somos adotados pela rua então. E como tenho uma mãe de pele negra. Às vezes doce e quente e as vezes fria e silenciosa. Como temos uma mãe que nos canta seus caminhos em busca de nos manter vivos e fugir do sussurro dos cassetetes da guarda municipal, não creio e nunca vi mãe dessas de televisão ou "mãe" como as que vocês tem. Ouso até achar que suas mães são as piores possíveis. São as mães que mentem para os filhos dizendo que está tudo bem e que tudo vai ficar bem quando se sabe pelas profecias nas encruzilhadas que não teremos salvação. Mãe de televisão (e as suas mães também) são as que mais sofrem por verem seus sonhos morrerem a cada escolha do filho. É isso. Por isso acredito nesta mãe de asfalto que deixa nossas escolhas nos devorarem como aprendizado prático, não aquelas que trabalham duro para que a CASA fique em bom estado. Nós lutamos para que a rua fique em um ótimo estado. As pessoas não desaparecem a toa e você bem sabe que os mendigos não estão realmente falando sozinhos. É só o filho contando suas aventurar para a mãe e e mãe buscando novos filhos.

6 comentários:

  1. suas postagens são muito interessantes!
    "Era domingo" foi uma das melhores.
    Parabéns!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Nossa, muito bom mesmo. Não só pelo conteúdo mas a sua narrativa é muito boa, não cansa, não é pedante.

    Gostei ;)

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  4. Thiti, ótimo esse conto, adorei... sempre me traz algo bom ler seus textos aqui!

    Beijaoo, saudades(sempre)!
    Naná

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  5. É uma crítica e tanto meu amigo. Mas eu adoro a minha mãe, ainda que ela não entenda minhas escolhas, ao menos ela conserva o meu lar em bom estado. Isto já o suficiente para meu conforto.

    Prefiro minha mãe de laços sanguíneos a mãe de laços marginais.

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  6. Esse conto é de "mais um cara". www.twitter.com/_amparo

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