Minha morte não é novidade. Soube dela há quatro anos. Um dia, assim de repente, senti que no dia dezessete de agosto de 2010 morreria do coração. Hoje é o dia dezessete e por enquanto está tudo bem. Minha morte potencial é inesperada, já que sou um rapaz de vinte e poucos anos. De antemão avisei alguns amigos da chance de minha partida. Prefiro rir do possível não cumprimento de minha premonição do que pegá-los de surpresa e causar grande desconforto. Meu testamento está escrito a mão no meu diário vermelho. Preferi não avisar parentes. Imagine se me levam a serio! Hoje, passaria o dia em uma bolha e morreria frustrado. Preferi viver pra ver.
Eu acordei em cima da hora. O despertador estava desregulado. Pulei da cama e tive a intenção de sair de casa em menos de dois minutos. Não queria chegar atrasado para minha aula de fotografia, faltei às três primeiras do semestre. Caso eu não faleça, as faltas seriam minha morte no final do período. Saí correndo da cama, botei a primeira roupa que encontrei, peguei minha bola de futebol e um calção (eu pretendia jogar bola hoje). Enquanto eu botava os sapatos, meu pai saiu de seu quarto e falou que passaria o café. Respondi que não havia tempo, mas acabei cedendo. Cinco minutos para quem está trinta, atrasado, não é nada. Já que vou morrer hoje, não tomar café com meu progenitor seria sacanagem. Tomei amargo. O gostoso do café foi ver que meu pai odiava formigas tanto quanto eu. Ele mata formigas como eu. Senti-me orgulhoso e feliz de estar passando este café da manhã com ele. Logo parti atrasadíssimo! Puta que pariu, pensei, vou ter que pegar aquele engarrafamento! Tô lascado! Estava mesmo.
O engarrafamento estava esplendoroso. Nunca, em todas as minhas idas para a faculdade, tinha pegado um engarrafamento daqueles. Era quase bonito. Os pontos mais críticos de lentidão tinham se encontrado. O que normalmente eu faria em 15 minutos, hoje eu faria em 30. Parei para curtir a melancolia de minha despedida desse mundo. Vi então que estava chovendo uma chuva leve, um sol distante iluminava os prédios do centro da cidade. Calculei que essa era a forma da natureza me dar um beijo molhado de tchau. Agradeci botando a mão para fora do vidro e deixando minha mão encharcar. Eu não sentia pressa de viver.
Meu Mp3 estava tocando no aleatório quando caiu em uma musica de um CD da Gal Costa que eu nunca gostei e nunca escutei inteiro e que meu amigo sempre dizia que era foda. “Gal – Fatal”. Já que eu vou morrer mesmo, porque não? Tirei do aleatório e deixei o CD rolar. Vai que a ironia do destino seria que eu teria um piripaque ouvindo um CD “Fatal”. Enquanto eu ouvia as músicas daquela gravação duvidosa com aquele violão grunhinhento, observava que minha fila do engarrafamento andava mais devagar do que as outras. Calculei que a culpa era do caminhão pesado que estava em minha frente carregado de não sei o que tentando subir uma rampa na primeira marcha. Li “Filho da mãe” numa placa do lado da luz do freio. Ri e disse para mim mesmo, Filho da mãe. Dei seta para o lado e mudei de pista. Duas músicas depois vi que o filho da mãe estava na puta que pariu e eu fiquei para trás na fila que agora cismava em ficar lerda. Eu já estava atrasado para a aula, não havia meio de curar esse mal. Agora bastava rezar para que o professor não fizesse chamada.
Dei a chance que a Gal Costa merecia de ganhar meu apreço. Ela não conseguiu. Decidi que assim que eu chegasse em casa, tiraria o álbum do Mp3. O “Gal Costa – acústico MTV” começou. Prefiro esse CD. É menos rebelde e mais doce aos ouvidos. Voltei para minha pista original acreditando que meu destino era seguir nela e concluí que tinha sido um erro querer ir para a do lado.
Enquanto eu me perdia entre embreagens, primeiras e segundas marchas e aceleradores, comecei a sentir dor de cabeça por fome e ao mesmo tempo comecei a pensar como foi conveniente minha vinda para a Bahia. Desta forma, pude me despedir de todos meus amigos da melhor forma possível. Poucas pessoas conseguem fazer uma festa de despedida assim com tanta alegria. É gostoso não ter uma morte melancólica. Fiquei triste imaginando meus pais tendo que lidar com minha mortitude. Ainda bem que nos últimos tempos tiramos muitas fotos e fizemos filmes diversos. Eles terão como se lembrar de minha maneira e de minhas manias. Tenho guardado gravações de vídeo de todas minhas musicas e as salvei em uma pasta óbvia no meu computador. Aproveitei e salvei todos os meus textos numa outra pasta. Deixei minhas coisas organizadas para que possam lembrar de mim sem dificuldade.
Um professor de filosofia um dia me disse que muitos jovens têm a sensação que vão morrer jovens. Completou dizendo que essa sensação é típica de quem não consegue se conceber maduro, adulto, crescido. É uma sensação de transição. É mais fácil se imaginar morto do que responsável. Nisso, eu acredito. Temo a responsabilidade como uma jaca teme o chão.
Um Opala venenoso entrou na minha frente. Estava tentando ir para a fileira da extrema esquerda que, naquele momento, estava mais rápida. No vidro traseiro estava uma propaganda política de um rapaz com olhar 43 e um bigodinho Sanchez muquirana. Eu via naquela cara tanta picaretagem que sentia que aquele adesivo só podia estar colado naquele carro. Gravei seu número, sabia agora que naquele sujeito eu não votaria. Me deleitei em silêncio quando vi que o Opala venenoso ficou pra trás uns 6 carros depois que chegou na sua pista que presumia ser mais rápida. Normalmente implico com os carros vermelhos. Não gosto de carros vermelhos. Logo após o encontro com o Opala, eu me encontrei entre um carro vermelho e outro mais ainda. Percebi que aquela era minha hora. Dois carros vermelhos me rodeando não poderia ser coisa boa. Confesso que meu coração acelerou um pouco, mas no fim das contas não foi nada. Eles se dissolveram entre os outros carros assim que eu me distraí.
Cheguei à faculdade salvo! Estava quase meia hora atrasado. Estacionei o carro numa vaga miserável que ficava no fundo numa área aberta, tomei chuva até chegar ao pavilhão, onde já estava acontecendo a aula. Quando se está atrasado para um compromisso, não se pensa na sua mortalidade. Entrei na sala fazendo o mínimo de barulho possível. Dei um bom dia com um aceno com a cabeça para o professor e sentei a três cadeiras da primeira. A sala estava semi-cheia. A aula foi normal. Aprendi sobre a sensibilidade dos filmes. Gostei. Anotei como se fosse fazer todas as avaliações do curso. Eu nunca fui bom com premonições. Acertei poucas coisas na vida. Meu instinto sempre teve a mira torta. Vai que eu não vou dessa pra uma melhor. Não posso prejudicar meu mais provável futuro acadêmico.
No intervalo, comi uma coxinha de galinha fria e fiquei desolado por não ter café. A energia da cafeteria tinha acabado. Se Deus existe, essa foi uma maneira muito sacana de boicotar meu último dia. Ele não devia ter me tirado o café. Logo o café! Tirava a coxinha! Eu não ligo pra coxinha! Mas depois percebi a sagacidade do ato divino. Ele me deu a coxinha engordurada pra dar o empurrãozinho no ataque cardíaco. Há! Agora sim entendo as linhas tortas de Deus!
A aula continuou sem grande emoção. O dia estava estranhamente frio. O professor disse que precisaríamos de câmeras profissionais para fazer o curso. Lá se vai uma grana... Se eu morrer, o dinheiro da Câmera vai para o enterro. Quando a aula acabou, um amigo chegou pedindo carona. O dia estava chuvoso. Companhias são sempre bem-vindas. Entraí! Ele entrou com o pretexto de ser meu conselheiro amoroso. Falou os certos e errados de uma investida, onde errei, como errei. Durante parte do discurso dele fiquei feliz que não deixarei nenhuma namorada pra trás. Ter um namorado que morreu seria uma péssima história para carregar pela vida. Voltei a mim quando ele disse que seria muito triste viver sabendo que deixou par trás oportunidades com mulheres por falta de malícia. Pois é, eu não sou malicioso. Nunca fui. Acredito fortemente que minha vida foi o que foi por causa de minha falta de malícia. Os amigos que tenho, as namoradas que tive, as namoradas que não tive, minha relação com a família. Acredito que minha falta de malícia me permitiu ser mais amável. Essa mesma essência quase boboca é a mesma que me levou para a arte em vez de para a academia. Preferi escrever poemas sobre o sofrimento a mudar meu comportamento e minha aparência.
Cheguei em casa morto de cansaço. Queria dormir. Parei para ler um pouco no sofá. Quando comecei a ficar doído, decidi ir para meu quarto ler deitado. Dormi em poucos minutos. Era um livro pouco atraente sobre conceitos básicos da fotografia. Sonhei com gente que já tava morta, com gente que me matou por dentro, com gente que vi há pouco tempo e com gente que me dava raiva. O sonho terminou com meu pai me acordando para almoçar. Que alívio. Fui almoçar. Eu, minha mãe e meu pai. Um prato de carne assumidamente feio por meus pais e pela cozinheira. “A culpa é do supermercado barato com carne bichada!” Todos concordavam. Pra mim a carne estava igual à de sempre... Mas tudo bem. Achei gostoso meu ultimo almoço com meus pais. Enquanto eu acordava e mastigava as primeiras garfadas, pensava em como era curioso que eu não me afetava por saber que estava por morrer a qualquer momento. Em nenhum momento nesses quatro anos eu me afetei e fiz besteiras inconseqüentes por saber exatamente o dia de minha ida. Talvez essa noção só me fez mais livre para viver com mais espontaneidade. Não me fiz maluco nem delinqüente, me fiz autêntico. Preferi viver a meu bel-prazer. Fiz o que me dá prazer, mesmo isso sendo aquilo que não me dá prazer direto. Acredito que trouxe felicidade a muitos. E poucas tristezas a poucos. Isso me deixa feliz. Morro tranqüilo.
Após o almoço levei meu pai ao trabalho e me despedi de minha mãe que ia ao médico tirar uns pontos. Mais tarde meu pai iria ao aeroporto para ir à São Paulo. Despedi-me dele como se fosse nada mais que um “até breve”. Ele não entenderia um abraço excepcionalmente apertado. Cheguei em casa, minha mãe ainda não havia voltado. Abri o computador, respondi a uma amiga que perguntara se ainda estava vivo. Comi chocolates. Pedi um café para a cozinheira que me trouxe na bandeja um café extra-forte. Fiquei extremamente feliz. Tomei o café enquanto dava conselhos para uma amiga desamparada por MSN. O café me soltou o intestino. Fui ao banheiro e senti como seria o alivio de uma última cagada. Pensei que poderia morrer fazendo o esforço básico abdominal, mas o café me privou desse desconforto. Continuei respirando. Botei um bom ar. Continuei respirando. A vida insistia. Logo aquele mundo virtual me deixou cansado. Um amigo me ligou para tocarmos violão e tentar compor algo. Disse que não. Eu não queria me arriscar em mais um engarrafamento. Eu estava sobrevivendo o dia em calma, bastava a eminência de um ataque cardíaco. Prefiro morrer de ataque cardíaco do que de acidente de carro. Não quero estar desfigurado, para o reconhecimento no IML. Sem contar que em questão de caixão, é melhor ser um morto apresentável. Acho que falecendo do coração posso ter uma expressão mais tranqüila. Não quero ser enterrado. Quero ser cremado. Tenho horror a larvas e cadáveres semi-decompostos. Taque minha cinza em qualquer lugar, só não quero ficar num lugar só. Num poema escrevi que o homem só é livre de verdade quando suas cinzas estão soltas no vento. Sentei no computador e decidi escrever sobre hoje.
Minha mãe chegou há mais ou menos um parágrafo. Por enquanto estou vivo. Anoiteceu. Bebi bastante café. Não sei o que fazer para passar o tempo. Me sinto num aeroporto esperando para embarcar num vôo atrasado sem previsão para decolagem. Chequei e-mail, Orkut, respondi mensagens, escutei músicas, tentei compor uma, assisti “Friends” e depois “Simpsons”. Quando fui assistir “Two and a half men”, senti um aperto no peito. Eu pensei que estava para acontecer o inevitável. Sentia minha válvula mitral tremendo, minhas veias comprimindo. Botei o dedo na jugular para ver como estavam meus batimentos. Doía. De repente me bateu uma dificuldade de respirar, como se eu tivesse entupido, ou inchando. Não sabia ao certo, não sabia o que era. Fiquei sentado, imóvel, tentando descobrir se isso era placebo ou o embarque final para meu destino final. Fui à cozinha, bebi uma água, depois um suco. Nada fazia passar a sensação de desconforto. Relaxei. O que for, será. Continuei assistindo o seriado. Quando acabou, ainda estava vivo. Fui ao computador mais uma vez e gravei minha ideia musical. Conversei com minha mãe sobre meus projetos com meus amigos, e falei das ultimas criações, mostrei a pasta com os vídeos das minhas musicas. Foi muito prazeroso. Minha mãe é querida. Tomamos sopa, bebemos suco de uva, arrumamos a mesa para o café da manhã e tudo parecia estar perfeitamente normal.
Aos poucos fui assumindo que minha ideia de morte prevista era um delírio de menino besta. Fiquei feliz de não ter espalhado o boato a todos os ventos. A tranqüilidade da minha família não precisou ser abalada. Escovei os dentes, liguei o Ar, me cobri, peguei o Laptop e continuei escrevendo até às 23h. Amanhã tenho que acordar cedo. Tenho aula de produção gráfica. Gosto de estar arrumado e disposto. Espero não morrer nessa próxima uma hora. Não gostaria de morrer amanhã também não. No fundo, não gostaria mais de prever minha morte. Tem certos segredos da vida que devem se manter como são. Devemos viver até morrer e pronto. De resto, a gente faz o que der na telha.