sábado, 21 de agosto de 2010

Meu último dia vivo (ou apenas mais um dia vivo)

Minha morte não é novidade. Soube dela há quatro anos. Um dia, assim de repente, senti que no dia dezessete de agosto de 2010 morreria do coração. Hoje é o dia dezessete e por enquanto está tudo bem. Minha morte potencial é inesperada, já que sou um rapaz de vinte e poucos anos. De antemão avisei alguns amigos da chance de minha partida. Prefiro rir do possível não cumprimento de minha premonição do que pegá-los de surpresa e causar grande desconforto. Meu testamento está escrito a mão no meu diário vermelho. Preferi não avisar parentes. Imagine se me levam a serio! Hoje, passaria o dia em uma bolha e morreria frustrado. Preferi viver pra ver.

Eu acordei em cima da hora. O despertador estava desregulado. Pulei da cama e tive a intenção de sair de casa em menos de dois minutos. Não queria chegar atrasado para minha aula de fotografia, faltei às três primeiras do semestre. Caso eu não faleça, as faltas seriam minha morte no final do período. Saí correndo da cama, botei a primeira roupa que encontrei, peguei minha bola de futebol e um calção (eu pretendia jogar bola hoje). Enquanto eu botava os sapatos, meu pai saiu de seu quarto e falou que passaria o café. Respondi que não havia tempo, mas acabei cedendo. Cinco minutos para quem está trinta, atrasado, não é nada. Já que vou morrer hoje, não tomar café com meu progenitor seria sacanagem. Tomei amargo. O gostoso do café foi ver que meu pai odiava formigas tanto quanto eu. Ele mata formigas como eu. Senti-me orgulhoso e feliz de estar passando este café da manhã com ele. Logo parti atrasadíssimo! Puta que pariu, pensei, vou ter que pegar aquele engarrafamento! Tô lascado! Estava mesmo.

O engarrafamento estava esplendoroso. Nunca, em todas as minhas idas para a faculdade, tinha pegado um engarrafamento daqueles. Era quase bonito. Os pontos mais críticos de lentidão tinham se encontrado. O que normalmente eu faria em 15 minutos, hoje eu faria em 30. Parei para curtir a melancolia de minha despedida desse mundo. Vi então que estava chovendo uma chuva leve, um sol distante iluminava os prédios do centro da cidade. Calculei que essa era a forma da natureza me dar um beijo molhado de tchau. Agradeci botando a mão para fora do vidro e deixando minha mão encharcar. Eu não sentia pressa de viver.

Meu Mp3 estava tocando no aleatório quando caiu em uma musica de um CD da Gal Costa que eu nunca gostei e nunca escutei inteiro e que meu amigo sempre dizia que era foda. “Gal – Fatal”. Já que eu vou morrer mesmo, porque não? Tirei do aleatório e deixei o CD rolar. Vai que a ironia do destino seria que eu teria um piripaque ouvindo um CD “Fatal”. Enquanto eu ouvia as músicas daquela gravação duvidosa com aquele violão grunhinhento, observava que minha fila do engarrafamento andava mais devagar do que as outras. Calculei que a culpa era do caminhão pesado que estava em minha frente carregado de não sei o que tentando subir uma rampa na primeira marcha. Li “Filho da mãe” numa placa do lado da luz do freio. Ri e disse para mim mesmo, Filho da mãe. Dei seta para o lado e mudei de pista. Duas músicas depois vi que o filho da mãe estava na puta que pariu e eu fiquei para trás na fila que agora cismava em ficar lerda. Eu já estava atrasado para a aula, não havia meio de curar esse mal. Agora bastava rezar para que o professor não fizesse chamada.

Dei a chance que a Gal Costa merecia de ganhar meu apreço. Ela não conseguiu. Decidi que assim que eu chegasse em casa, tiraria o álbum do Mp3. O “Gal Costa – acústico MTV” começou. Prefiro esse CD. É menos rebelde e mais doce aos ouvidos. Voltei para minha pista original acreditando que meu destino era seguir nela e concluí que tinha sido um erro querer ir para a do lado.

Enquanto eu me perdia entre embreagens, primeiras e segundas marchas e aceleradores, comecei a sentir dor de cabeça por fome e ao mesmo tempo comecei a pensar como foi conveniente minha vinda para a Bahia. Desta forma, pude me despedir de todos meus amigos da melhor forma possível. Poucas pessoas conseguem fazer uma festa de despedida assim com tanta alegria. É gostoso não ter uma morte melancólica. Fiquei triste imaginando meus pais tendo que lidar com minha mortitude. Ainda bem que nos últimos tempos tiramos muitas fotos e fizemos filmes diversos. Eles terão como se lembrar de minha maneira e de minhas manias. Tenho guardado gravações de vídeo de todas minhas musicas e as salvei em uma pasta óbvia no meu computador. Aproveitei e salvei todos os meus textos numa outra pasta. Deixei minhas coisas organizadas para que possam lembrar de mim sem dificuldade.

Um professor de filosofia um dia me disse que muitos jovens têm a sensação que vão morrer jovens. Completou dizendo que essa sensação é típica de quem não consegue se conceber maduro, adulto, crescido. É uma sensação de transição. É mais fácil se imaginar morto do que responsável. Nisso, eu acredito. Temo a responsabilidade como uma jaca teme o chão.

Um Opala venenoso entrou na minha frente. Estava tentando ir para a fileira da extrema esquerda que, naquele momento, estava mais rápida. No vidro traseiro estava uma propaganda política de um rapaz com olhar 43 e um bigodinho Sanchez muquirana. Eu via naquela cara tanta picaretagem que sentia que aquele adesivo só podia estar colado naquele carro. Gravei seu número, sabia agora que naquele sujeito eu não votaria. Me deleitei em silêncio quando vi que o Opala venenoso ficou pra trás uns 6 carros depois que chegou na sua pista que presumia ser mais rápida. Normalmente implico com os carros vermelhos. Não gosto de carros vermelhos. Logo após o encontro com o Opala, eu me encontrei entre um carro vermelho e outro mais ainda. Percebi que aquela era minha hora. Dois carros vermelhos me rodeando não poderia ser coisa boa. Confesso que meu coração acelerou um pouco, mas no fim das contas não foi nada. Eles se dissolveram entre os outros carros assim que eu me distraí.

Cheguei à faculdade salvo! Estava quase meia hora atrasado. Estacionei o carro numa vaga miserável que ficava no fundo numa área aberta, tomei chuva até chegar ao pavilhão, onde já estava acontecendo a aula. Quando se está atrasado para um compromisso, não se pensa na sua mortalidade. Entrei na sala fazendo o mínimo de barulho possível. Dei um bom dia com um aceno com a cabeça para o professor e sentei a três cadeiras da primeira. A sala estava semi-cheia. A aula foi normal. Aprendi sobre a sensibilidade dos filmes. Gostei. Anotei como se fosse fazer todas as avaliações do curso. Eu nunca fui bom com premonições. Acertei poucas coisas na vida. Meu instinto sempre teve a mira torta. Vai que eu não vou dessa pra uma melhor. Não posso prejudicar meu mais provável futuro acadêmico.

No intervalo, comi uma coxinha de galinha fria e fiquei desolado por não ter café. A energia da cafeteria tinha acabado. Se Deus existe, essa foi uma maneira muito sacana de boicotar meu último dia. Ele não devia ter me tirado o café. Logo o café! Tirava a coxinha! Eu não ligo pra coxinha! Mas depois percebi a sagacidade do ato divino. Ele me deu a coxinha engordurada pra dar o empurrãozinho no ataque cardíaco. Há! Agora sim entendo as linhas tortas de Deus!

A aula continuou sem grande emoção. O dia estava estranhamente frio. O professor disse que precisaríamos de câmeras profissionais para fazer o curso. Lá se vai uma grana... Se eu morrer, o dinheiro da Câmera vai para o enterro. Quando a aula acabou, um amigo chegou pedindo carona. O dia estava chuvoso. Companhias são sempre bem-vindas. Entraí! Ele entrou com o pretexto de ser meu conselheiro amoroso. Falou os certos e errados de uma investida, onde errei, como errei. Durante parte do discurso dele fiquei feliz que não deixarei nenhuma namorada pra trás. Ter um namorado que morreu seria uma péssima história para carregar pela vida. Voltei a mim quando ele disse que seria muito triste viver sabendo que deixou par trás oportunidades com mulheres por falta de malícia. Pois é, eu não sou malicioso. Nunca fui. Acredito fortemente que minha vida foi o que foi por causa de minha falta de malícia. Os amigos que tenho, as namoradas que tive, as namoradas que não tive, minha relação com a família. Acredito que minha falta de malícia me permitiu ser mais amável. Essa mesma essência quase boboca é a mesma que me levou para a arte em vez de para a academia. Preferi escrever poemas sobre o sofrimento a mudar meu comportamento e minha aparência.

Cheguei em casa morto de cansaço. Queria dormir. Parei para ler um pouco no sofá. Quando comecei a ficar doído, decidi ir para meu quarto ler deitado. Dormi em poucos minutos. Era um livro pouco atraente sobre conceitos básicos da fotografia. Sonhei com gente que já tava morta, com gente que me matou por dentro, com gente que vi há pouco tempo e com gente que me dava raiva. O sonho terminou com meu pai me acordando para almoçar. Que alívio. Fui almoçar. Eu, minha mãe e meu pai. Um prato de carne assumidamente feio por meus pais e pela cozinheira. “A culpa é do supermercado barato com carne bichada!” Todos concordavam. Pra mim a carne estava igual à de sempre... Mas tudo bem. Achei gostoso meu ultimo almoço com meus pais. Enquanto eu acordava e mastigava as primeiras garfadas, pensava em como era curioso que eu não me afetava por saber que estava por morrer a qualquer momento. Em nenhum momento nesses quatro anos eu me afetei e fiz besteiras inconseqüentes por saber exatamente o dia de minha ida. Talvez essa noção só me fez mais livre para viver com mais espontaneidade. Não me fiz maluco nem delinqüente, me fiz autêntico. Preferi viver a meu bel-prazer. Fiz o que me dá prazer, mesmo isso sendo aquilo que não me dá prazer direto. Acredito que trouxe felicidade a muitos. E poucas tristezas a poucos. Isso me deixa feliz. Morro tranqüilo.

Após o almoço levei meu pai ao trabalho e me despedi de minha mãe que ia ao médico tirar uns pontos. Mais tarde meu pai iria ao aeroporto para ir à São Paulo. Despedi-me dele como se fosse nada mais que um “até breve”. Ele não entenderia um abraço excepcionalmente apertado. Cheguei em casa, minha mãe ainda não havia voltado. Abri o computador, respondi a uma amiga que perguntara se ainda estava vivo. Comi chocolates. Pedi um café para a cozinheira que me trouxe na bandeja um café extra-forte. Fiquei extremamente feliz. Tomei o café enquanto dava conselhos para uma amiga desamparada por MSN. O café me soltou o intestino. Fui ao banheiro e senti como seria o alivio de uma última cagada. Pensei que poderia morrer fazendo o esforço básico abdominal, mas o café me privou desse desconforto. Continuei respirando. Botei um bom ar. Continuei respirando. A vida insistia. Logo aquele mundo virtual me deixou cansado. Um amigo me ligou para tocarmos violão e tentar compor algo. Disse que não. Eu não queria me arriscar em mais um engarrafamento. Eu estava sobrevivendo o dia em calma, bastava a eminência de um ataque cardíaco. Prefiro morrer de ataque cardíaco do que de acidente de carro. Não quero estar desfigurado, para o reconhecimento no IML. Sem contar que em questão de caixão, é melhor ser um morto apresentável. Acho que falecendo do coração posso ter uma expressão mais tranqüila. Não quero ser enterrado. Quero ser cremado. Tenho horror a larvas e cadáveres semi-decompostos. Taque minha cinza em qualquer lugar, só não quero ficar num lugar só. Num poema escrevi que o homem só é livre de verdade quando suas cinzas estão soltas no vento. Sentei no computador e decidi escrever sobre hoje.

Minha mãe chegou há mais ou menos um parágrafo. Por enquanto estou vivo. Anoiteceu. Bebi bastante café. Não sei o que fazer para passar o tempo. Me sinto num aeroporto esperando para embarcar num vôo atrasado sem previsão para decolagem. Chequei e-mail, Orkut, respondi mensagens, escutei músicas, tentei compor uma, assisti “Friends” e depois “Simpsons”. Quando fui assistir “Two and a half men”, senti um aperto no peito. Eu pensei que estava para acontecer o inevitável. Sentia minha válvula mitral tremendo, minhas veias comprimindo. Botei o dedo na jugular para ver como estavam meus batimentos. Doía. De repente me bateu uma dificuldade de respirar, como se eu tivesse entupido, ou inchando. Não sabia ao certo, não sabia o que era. Fiquei sentado, imóvel, tentando descobrir se isso era placebo ou o embarque final para meu destino final. Fui à cozinha, bebi uma água, depois um suco. Nada fazia passar a sensação de desconforto. Relaxei. O que for, será. Continuei assistindo o seriado. Quando acabou, ainda estava vivo. Fui ao computador mais uma vez e gravei minha ideia musical. Conversei com minha mãe sobre meus projetos com meus amigos, e falei das ultimas criações, mostrei a pasta com os vídeos das minhas musicas. Foi muito prazeroso. Minha mãe é querida. Tomamos sopa, bebemos suco de uva, arrumamos a mesa para o café da manhã e tudo parecia estar perfeitamente normal.

Aos poucos fui assumindo que minha ideia de morte prevista era um delírio de menino besta. Fiquei feliz de não ter espalhado o boato a todos os ventos. A tranqüilidade da minha família não precisou ser abalada. Escovei os dentes, liguei o Ar, me cobri, peguei o Laptop e continuei escrevendo até às 23h. Amanhã tenho que acordar cedo. Tenho aula de produção gráfica. Gosto de estar arrumado e disposto. Espero não morrer nessa próxima uma hora. Não gostaria de morrer amanhã também não. No fundo, não gostaria mais de prever minha morte. Tem certos segredos da vida que devem se manter como são. Devemos viver até morrer e pronto. De resto, a gente faz o que der na telha.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carta Ao filho - ou Meu Pai deve ter sido Poeta

Rio de janeiro 18 de outubro de 1993 "Não está morto o que em eterno jaz, pois o tempo até a morte desfaz" Filho, não sei quando você vai ler esta carta, nem sei se um dia você irá lê-la, mas escrevo com este niilismo corrente das impossibilidades do destino. Como não sei quando você a terá em mãos espero ser o, mas completo em minhas palavras. Da sua Infância para que sempre busque ser rei de seus sentimentos de brincadeira Sei que você nem chegou a conhecer seu papai, e sei que isso deve ser triste de mais, ver seus amiguinhos entregando presentes dos dias dos pais e sua mãe tendo que recebê-los mais e mais, mas papai sabe que você sempre ficou ao lado de sua mãe, você foi o homem da casa pois aprendeu desde cedo que a vida não era fácil. Gosto muito de sua mãe, então cuide bem dela, você já deve ter se perguntado, o porquê do papai não morar mais com você já que sua mamãe é a , melhor mãe do mundo, certo? Gosto muito dela, e provavelmente gostarei dela para sempre, ele me deu você, que é minha maior inspiração posso te dizer filho, que há duas coisas mais perigosas do que tudo na vida, o medo e o tempo. Garoto, o medo é tudo o que você não sabe, e não é feio admitir nossos medos, e nesta sua idade é comum termos medos do que não conhecemos, e por isso sei que deve, de certa forma ter medo dos assuntos relacionados a seu pai, a min., viver sem saber onde seu pai está e viver querendo que ele volta e, ainda mais, não saber como reagir se o encontrar, esses são medos que te fortificam e fortalecem. E o tempo filho é o único que sempre esteve lá e sempre estará ele não para nunca de vigiar e cuidar vive sempre de lembrar e não se cansa de esperar. Não brinque com ele. E ponto. Pois ele não gosta de se perder, e nem que outros o percam, ele pode ser pequenino como uma duração de uma brincadeira e infinito como esperar para crescer. Cuide bem dele, senão ele vai assustar você. Da sua juventude para que busque sempre ser fortaleza dos sentimentos Filho, existe uma coisa, da qual você tomará conhecimento nesta faze de sua vida que vai ser perene em sua formação de personalidade e no seu modo de agir. É o motivo de o mundo andar com tantas guerras e a primeira lembrança de sofrimento que teremos, muitas pessoas tentaram explicar por que acontece e como cansamos de repeti-lo e não cansamos de tentar faze - lo perfeito. O amor vai assolar você para o bem ou para o mal de seus textos, e esse é um bom modo de saber como sua cabeça jovem pensa amor, somente revise seus textos e perceba que amor eles querem dizer como este texto meu para você filho. A parte mais difícil de sair da juventude, é mudar a sua visão do mundo com relação as mulheres, é uma coisa que é difícil, sair do conforto do amor materno e partir para as desventuras do coração. Filho há uma coisa que você sempre ouvirá, mas não deixará que isso te abale, muitos estudiosos afirmam que as mulheres amadurecem mais rápido, e isso é verdade, mas o homem ama primeiro. Eu poderia ficar falando de como você vai se revoltar com sua mãe, de como você talvez vá odiar sua escola e de como a política vai te parecer chata, mas escolhi algo mais interessante para falar. O amor. Por isso vou relatar como nossa sociedade vive em função das mulheres, sim, a juventude será o momento em que você irá perceber o verdadeiro poder delas, não sei se elas sabem, mas elas nos tem nas mãos você irá sofrer se perguntando porque ela está com outro cara se o cara certo para ela é você mas tarde você irá perceber que uma mulher tem muitos homens querendo fazê-la feliz, querendo adorá- la. E certamente o amor vai te mostrar que o não ter adquire um novo significado. O não tê-la é simplesmente não se conhecer em felicidade plena, o não tê-la em beijos abraços é simplesmente não conhecer o melhor de si, por isso o amor se faz necessário na juventude. Da Maturidade para que possa ver cada dia como uma nova possibilidade Filho, se você receber esta carta nesta época sei que entenderá minhas palavras plenamente quando explico o motivo de não ter entregado pessoalmente a carta a você. Estou doente, e provavelmente quando receber esta carta estarei morto, não tinha muito tempo de vida quando deixei sua mãe só, fui fraco. Admito. As pessoas costumam demorar muito para formarem personalidades, e quando deixam de adotar pacotes básicos de personalidades durante a vida tendem a criar algo novo, propriamente seu, entretanto, quando isso as ocorre se fecham para o mundo a fora guardando sua personalidade, como se fosse a única coisa que as diferenciasse dos outros. E elas param aí. As pessoas não mudam do mesmo modo que a maturidade. Filho espero que você não pense que maturidade é somente terminar faculdade constituir família e aproveitar a estabilidade de um bom relacionamento com os filhos e família. A graça da maturidade é ver seus filhos fazendo o que você fez de errado na juventude e aconselhá-lo. Eu não pude fazer isso com você, mas sei que a escola da vida te ensinou tudo, não é verdade? Aprendemos a maior parte das coisas da vida na rua, quando saímos do conforto do lar.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O mundo entre a boca e o nariz

Quis pensar em flores ou no ar puro da montanha. Tentei até me levar para um restaurante japonês. A carne crua do peixe, rosado, fedorento, gostoso. O problema era o cheiro do peixe. Não gosto de cheiro forte. Deus me fez com nariz entupido sabendo minha disposição a não gostar de cheiros carregados. Um azedo bacteriado quase putrefato. Como são cruéis os cheiros do fim do dia, do início da manhã. Pobre são os povos nórdicos e suas temperaturas baixas e seus poucos banhos. A consumação no frio peca pelo excesso de roupas e pelo azedo impregnado em todas as camadas da vestimenta.

Tentei tomar coragem. Contei até três, depois até cinco, se deixasse, chegava a números que eu não saberia nem o nome. Queria dar o prazer de um presente bem dado. Não dava. Se ao menos o mau cheiro também fosse meu... Dois sujos se anulam. Não. Eu estava limpo. Banho tomado, dente escovado, perfume posto e barba feita. Nunca gostei de comer bacalhau, nem ostra, nem sarapatel. Gosto de comida cheirosa. Feijoada, carne de churrasco, pizza à lenha. Sabor específico e não exagerado. Aromático, convidativo.

Só havia uma solução para o infortúnio. Era deveras indelicada. Era tudo ou nada! Como dizer? Como frasear? Como conseguir? Como interromper? No desespero tive que ser rude da maneira mais eufêmica. Meu bem, estamos com cheiro de dia. Vamos ao banho? Sucesso.

A água corrente é revigorante, milagrosa, saborosa, deliciosa! Uma roupa nova para o mesmo corpo. Uma nova textura para a mesma pele. Um novo tempero para cada velho azedo. Estupenda sensação de renascimento. Não é a toa que só existe vida onde existe água.

Não precisava mais pensar em flores, em perfumes, em sabores raros. A realidade enxaguada era a mais saborosa de se deleitar. Me perdi como um garoto que passa o dia na praia cavando para chegar na China. Esqueci meu nome, perdi a hora, deixei de existir. Ela também.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Chafé

O chá estava com gosto de café, mas tudo bem. Aprendi que a diferença principal entre o gato e a lebre está no tamanho da fome. Não queria aquele chá. Acabei tomando, já tinha pagado e dado um gole. Não gosto de devolver sanduiche mordido nem bebida tomada, mas tudo bem, não escrevi para falar do chá e sim do que me fez tomar o chá. Eu queria escrever. Para escrever, eu preciso tomar algo que me dê tempo de pensar. A inspiração às vezes é mecânica. O tema era complicado. Queria falar na entrelinha e impressionar o olhar atento, mas acabei me focando mais no chá. Ele havia esfriado muito rápido. Talvez, eu escrevi muito devagar. Falar não falando é trabalhoso.

Enquanto eu escrevia, eu pensava em ser direto de vez e deixar claro logo minhas intenções. Mas dizer o já dito e citar o já citado não vale a pena quando se quer prender a atenção. Aspas serviriam se minha óbvia vontade fosse explícita. O que cabe aqui entre os meus As e Bs é muito mais uma sensação que não cabe no texto. Quero ter entre essas palavras o sentimento que não está nelas, quero o sentimento que será sentido a partir delas. Quero com elas, no olhar atento, daquela pessoa, que eu espero que leia e esteja atenta, que ela veja e entenda que eu quero que ela veja e entenda.

Falei o suficiente. O chá já não presta mais. A conta está paga. Agora é esperar a digestão pra ver se o chá era chá ou se era mesmo um café aguado.