domingo, 4 de abril de 2010

O vegetariano que comeu um peixe

O ser humano vale a pena, sempre repetiu o jovem. Esse era o principal pensamento que lhe passava antes de partir em sua viagem sem rumo e sem destino pelo Brasil. A incerteza de tudo que estava por vir era, talvez, o principal combustível para a aventura. A vontade de conhecer o mundo e os caminhos do mundo e as pessoas do mundo por meio do acaso faziam toda aquela experiência ganhar uma proporção mística de leveza e de destino que poucas pessoas seriam capazes de experimentar. Talvez essa tenha sido uma grande epopéia pela liberdade. Na estrada, no distante, no desconhecido, não se tem casa, não se tem nome, não se tem tudo. Tens a ti e a ti somente, impulsionado por um espírito inquieto de descoberta e de contínua caminhada rumo ao desconhecido.

Não cabe à minha pessoa contar toda sua trajetória, pois não a sei. Tenho a certeza de que ela foi repleta acontecimentos raros, encontros inusitados, azares sortudos... Enfim. Não cabe neste texto toda sua história... Cabe uma passagem, Uma grande passagem de uma noite. Um momento que deveria ser brindado por todos que prezam pelo o que é pouco, mas que é muito e quase tão grande que quase não caberia em um simples texto de homenagem como esse.

Por azar, o rapaz não pôde pegar o ônibus da noite para a próxima cidade. Sua carona havia quebrado no meio do caminho para a rodoviária. Quando ela estava concertada, era tarde demais. Seu dinheiro era contado e exato. Não havia meio de conseguir um quarto em uma pousada. Sua única maneira de ganhar dinheiro era tocando seu violão nas praças durante o dia. Ele estava fadado ao aconchego de um banco no largo da cidade. Esse jovem era uma figura de estatura e valente. Se fazia valer pela aparência de mal encarado, perfeita para bandidos e para afastar os mesmos. Deixava seu cabelo longo solto e sempre agia como se estivesse em pleno controle de toda situação, de forma que charlatões não teriam meio de tirar proveito dele.

Enquanto se preparava para uma noite ao relento, rapaz foi abordado por uma velha senhora pobre que, em um tom quase impositivo e extremamente carinhoso o fez entender que para ele não havia meio de dormir vulnerável às friagens. A casa dela, por mais simples que fosse, tinha um espaço livre que deveria ser ocupada por ele. Sem opção ele aceitou com um sorriso cordial o convite e a acompanhou até sua moradia. No caminho, ela explicou os malefícios de uma noite no sereno. Em sua casa, ela indicou a cama do rapaz e falou que tudo que ela poderia oferecer a ele era peixe com farinha e que ele tinha que comer tudo, pois parecia abatido e cansado. Precisava de comida. Ela preparou seu prato enquanto ele organizava seus pertences. Ela não sabia, mas ele não comia peixe. Ele não sabia comer peixe, conhecia apenas os perigos das espinhas. Era vegetariano. Não comia carne alguma. Não gostava. Não lhe assentava bem. Era contra sua índole, sua ideologia, seus hábitos... Era contra ele. Mas naquele dia, naquela casa, naquele caso, não havia meio de negar. Ela era o amor cego de um ser humano para com o outro. A comida era mais do que a comida, a casa era mais do que a casa. Ele não torceu o nariz, nem comentou sua dificuldade de não engolir as espinhas. O jovem raspou o prato e com um sorriso além daquele de estar saciado agradeceu pela refeição. A velha imediatamente o mandou para a cama para dormir logo e descansar de vez. Ele quis ainda tocar uma música para agradecer o cuidado, mas era tarde e ela fez questão de que não.

No dia seguinte, em despedida, ele a presenteou com itens do mercado local que estavam em falta em sua casa. Ela marejou seus olhos áridos de vida árdua e falou “vá com Deus meu filho” e ele já um pouco distante lançou um tchau alegre e foi em direção a rodoviária continuar o caminho sem fim, sem destino e sem rumo que era sua descoberta do Brasil. Quando o dia de voltar chegou, e sua casa estava a poucos metros de seus pés, novamente o pensamento repetia e se confirmava em sua cabeça: “O ser humano vale a pena”.

Um comentário:

  1. Gostei! Poderia ser eu hhehehe. A não ser pela cara de mau, e essa parte toda...
    Mas da uma sensação boa, da vontade de fazer essa viagem!

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