sexta-feira, 23 de abril de 2010

Terra erra, Marte arte

O poeta desconhecido declamava um novo e raivoso poema enquanto a plateia clamava por uma releitura de Olavo Bilac. Os ânimos estavam naturalmente centrados nos gigantes do passado e nos egos do presente. Cada um ludibriando o próprio. Eram listas de quem conhecia quem, de quem tinha o quê, das grandiosidades de cada umbigo. Ideias não eram trocadas, conversas não eram diálogos, ouvidos eram pinicos.

Podia-se dizer que era uma festa de pessoas ilustres, raras e super poderosas.Um rapaz se dava o ar de Deus enquanto aureava o reto dizendo que não errava. Outro dizia negar apresentações ao papa por não querer cansar a voz. Tinha até um Messias, que por medo de ser taxado de imaculado, não se revelou ao público como o salvador.

Quando a banda desconhecida subiu para mostrar sua música, não se espantou com o oposto do interesse misturado com o oposto do afeto. Enquanto eles tocavam algo levemente dissonante e cantavam uma letra levemente singular, eram ovacionados por gritos do estilo “toca Raul”, porém variando entre nomes de compositores desde a renascença até a década de 70 com safas exceções de 80 e 90.

O sentimento que pairava era de que ninguém prestava. Fora si, não havia mais criadores nem criaturas que merecessem respeito e atenção. O lado íntimo da inspiração virou um afirmativo chulo embebido no vago status de ser artista. Era o pé de guerra mais glamoroso. A troca de farpas mais ilustre. A alfinetada mais fingida. Um lugar onde sim era não e um sorriso não era um sorriso.

Um pintor desconhecido pendurava suas últimas criações. Outros pintores desconhecidos derramavam em um não acidente o conteúdo de seus copos nas telas afirmando co-autoria, plena autoria ou pior, diziam que os borrões não eram deles nem de ninguém ali, senão de Jackson Pollock ou Van Gogh ou outro não presente e famoso. Os elogios eram embriagantes.A presença dos ausentes era uma afirmativa de poder e influência inegável. Fora as difamações, comentários oportunos e fofocas, os ausentes e falecidos eram explicitamente adorados. Eram pessoas belas, boas, bacanas, bem humoradas... Só às vezes eram ressaltadas como babacas inescrutáveis, bastardos ingratos e biltres incuráveis. O básico.

O Ator desconhecido percebendo onde estava e com quem estava, falou que faria um texto de parceria entre Shakespeare e Brecht (único e raro). Todos se calaram e se estarreceram com tamanha novidade. Alguém tentou fazer as contas, mas ninguém sabia quando cada um tinha nascido. Acreditaram. O Ator deitou e rolou em cima da plateia. Apontou dedos, explicitou crueldades, fez o mais culpado rir e o mais inocente se chocar. Foi lindo. Mais poesia que o poeta, mais música que o músico, mais pintura que o pintor e muito além da própria atuação. A plateia aplaudiu insandecidamente. Todos concordavam que Shakespeare e Brecht foram visionários ao perceber como o homem tende a ser egocentrado e cruel, ao mesmo tempo em que concordaram que o único problema da apresentação foi o ator.

Um comentário:

  1. Thiago, acho esse texto genial. Ele permite várias leituras. Eu o vejo como um "Ensaio sobre a crítica". Faz o maior sentido quando aplicado a certos acontecimentos específicos que me vêm à mente. É possível que tenha perdido uma ou outra "tese" da sua crônica, mas o que entendi (ou penso que) muito me agradou. Não recordo o autor, mas na adolescência li na Seleções do Reader’s Digest uma frase que jamais esqueci: "Se quiser fazer de um homem seu inimigo, diga-lhe que está errado; é um método que não falha." Desde então, tem sido para mim uma máxima norteadora de críticas, de todos os tipos, em qualquer área. Outra lição aprendida ao longo da vida é que não existe crítica isenta. Crítica é sempre subjetiva: toda crítica traz o gosto pessoal, valores, experiências, formação cultural. Tendemos a apreciar o que é familiar, antigo ou consagrado. E o afeto (pelo tema e pelo autor) é um filtro poderoso da crítica. Vejo isso claramente na crítica de cinema, em relação aos filmes nacionais (os amigos e certos temas são sempre "poupados"). Em um workshop da Estação, Ruffato alertou: "Quem não aponta defeitos não é seu amigo". Difícil pôr em prática, uma vez criado algum laço. É muito mais fácil criticar ou desdenhar o desconhecido (e os "desafetos").

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