O natal é uma mentira. Isso, a menina, não sabia. Ela era uma dessas meninas de 9 anos que ainda acreditava em mitos modernos como Papai Noel e Jesus. Vivia sonhando com um velho gordinho e rosado trazendo sei-lá-o-que. Passava o ano se comportando bem! Não cuspia no chão, não fazia pirraça, dormia na hora certa (mesmo estando sem sono), fazia o dever de casa e respeitava os idosos (obviamente para agradar a classe do bom velhinho). Imaginava conhecer as renas, rezava por neve tupiniquim, desenhava a fábrica de presentes no pólo norte... Era uma menina ingênua. Seu pai, um empreendedor nato, estava desempregado e quase falido. Diante do desespero de não ter dinheiro para presentes mágicos, resolveu abrir o jogo com sua filhinha e contar sobre as mentiras que alimentou durante os últimos 9 anos. Tinha a intenção de mostrar o lado cristão, humilde, do natal. Era tudo que ele tinha.
A filha, que era a única e o pai que era separado sentaram-se na sala quente do verão carioca para conversar ao lado de um pinheiro de plástico pequeno com neve fictícia. Ele começou a dizer que na vida tudo tem um significado e que a vida é muito mais do que o que a gente tem. “Entramos no mundo com nada, e saímos dele com a mesma coisa”. Ela fingia entender. Ele gesticulava, pegava em sua mão, ria, ficava sério. “Porque Jesus era um carpinteiro...” continuava “ É que Papai Noel é uma brincadeira ” e se explicava “seu pai está passando por um momento difícil” e terminou “o que importa é o amor.” A menina descrente dos absurdos do pai tentou lhe explicar que “O bom velinho existe, só precisa mandar uma carta para o Pólo Norte” o pai se estremeceu na espinha. Ao explicar mais aprofundadamente as verdades do mundo ele começou a esboçar uma camada de suor em sua camisa, o cabelo grudava na testa e a menina insistia “mas pai! Esse é o milagre do natal!” Enfim o pai já estressado e bastante angustiado levantou a voz e disse curto e grosso “Não tenho dinheiro para esses seus presentes. Esse ano não tem como eu te dar nada, não dá! É muito caro!”
A menina passou o dia em choque. Sua inteligência, que para ela, não era pouca, decifrou a mensagem do pai. Ele estava tentando cobrir Papai Noel. “Deve ser coisa de pais”. Era claro que Papai Noel não ia dar presente para ela! Ela tinha sido uma menina má. Tinha chamado um garoto da turma de burro, não escovou os dentes todas as noites antes de dormir, andava descalça no chão frio... Era claro! “Por quê, meu deus do céu?” Ela rapidinho ficou de joelho e começou a rezar pedindo desculpas “desculpe Deus por ter sido uma menina má, eu queria muito ganhar presentes de natal, fala com Papai Noel que ano que vem eu vou ser melhor, fala com meu pai que eu sou boa...” e assim foi por uns cinco minutos. Quando parou de rezar acreditou que tudo estava concertado.
Na calorosa manhã seguinte, no café da manhã, a menina foi cheia de pulos para o pai “ E aí? Ele falou com você” “Ele quem?” “Jesus, Papai Noel, Deus, um deles” “Filha, o que você está falando?” “Eu rezei ontem” “Rezou o que?” “Para Jesus falar com o você para falar com Papai Noel que podia me dar presentes” “Espera aí filha, não é bem assim!” A conversa do café da manhã não foi muito agradável. Enquanto o pai explicava as verdades e mentiras do mundo, que “Deus age de formas misteriosas” a filha tentava entender e só enriquecia suas fantasias. “Eu vou lá falar com ele então. Se eu falar com o Papai Noel , ele vai entender. Eu não sou má!” “Você não é! Quem botou isso na sua cabeça?” Mais meia hora de conversa foram na discussão sobre o que é bom, mau, o que é pecado... Quase que ele teve que explicar da onde vinham as crianças.
O café acabou com ar de assunto resolvido, mas o pai foi ingênuo ao acreditar que sua filha tinha entendido a realidade. Ele não conhecia a filha que tinha. O seu maior erro foi deixá-la na sala para ver televisão. A menina, indignada entrou na internet e pesquisou no Google onde fica o pólo norte e como se chegava lá. Se o seu pai não ia tomar providências com Noel, ela ia e pronto.
Em seu quarto pegou o casaco de lã e uma calça comprida, botou uma muda de roupa na mochila, pegou seu cofrinho, fez um sanduiche (ela sabia que sentiria fome na viagem), botou seu sapato mais quente, escreveu um bilhete com uma caneta rosa num papel cheiroso “ Fui ao Pólo Norte pedir desculpas” deixou em sua cama e sem fazer muito barulho saiu de casa. “Eu vou conseguir meus presentes de qualquer maneira” O porteiro abriu a porta pensando que ela ia à padaria, o trocador do ônibus ignorou o fato da menina estar sozinha, eu estranhei ela saber chegar no aeroporto, mas ela chegou.
No Google, ela descobriu que a melhor maneira de ir para o pólo norte era pelo Canadá. De lá ela teria que pegar uma conexão para o Pólo Norte. A menina por azar ou por sorte achou o saguão do AirCanada e inspirada em muitos filmes de ficção deu um jeito de entrar escondida dentro de uma mala que ia para o avião que queria. Dentro do avião prestes a decolar ela sorria interminavelmente sabendo que finalmente iria conhecer as renas e a neve. Estava indo para o natal verdadeiro!
O pai veio a perceber a ausência da filha tarde demais. Primeiro achou que era brincadeira, mas foi por pouco tempo. O porteiro falou que ela tinha saído havia algumas horas. Já desesperado, ele ligou para todas as autoridades, familiares, vizinhos, pegou o carro e foi pelo mundo procurar a filha tão impressionável. O medo e o horror tomaram o pai por completo.
A filha estava em pleno vôo. Começou a sentir o frio que deveria ser sentido em dezembro. Andava e pulava por entre o emaranhado de malas “Daqui a pouco eu vou me encontrar com ele!” O que ela não sabia era que o Google mapas mostrava o mundo reduzido. As horas foram passando, o frio foi aumentando, o sanduiche já tinha sido devorado e não tinha sido o suficiente, ela começou a se encolher nos casacos alheios, tremia.
O pai já estava descontrolado perguntando a tudo e a todos se alguém vira sua filha. Um sobrinho olhando o computador da casa abriu o histórico da internet para ver se achava alguma coisa e achou. Dezenas de pesquisas sobre o Pólo Norte, Canadá ônibus, aeroporto... Em poucas horas o sistema interno de segurança tinha com clara nitidez a imagem da menina entrando no aeroporto, na mala... Identificaram o avião que estava em pleno vôo e alertaram sobre a menina.
Haviam 12 horas que ela estava lá. Encontram o corpo já rígido e fedendo a urina. Não houve respiração boca a boca ou desfibrilador que trouxesse a menina de volta para a cruel realidade. Morreu congelada. “Será que ela sofreu?” “Porque ela não gritou?” “Que horror! Que horror!”
O pai foi avisado do ocorrido e quis se matar. Chorou e chorou... Deram um sedativo para ele conseguir fugir da realidade.
O Natal foi horroroso. A família não sabia o que fazer. De repente Papai Noel virou uma figura abominável, neve, frio, rena... Absurdos! Mentiras das piores! “Não se pode mentir para crianças!” “Cadê deus nessas horas!?” Nesse Natal, não houve presépio nem missa. Não havia o milagre do natal para os homens do mundo real. “Não existe reza que cure a crueldade do caos no destino.”